quarta-feira, 4 de março de 2009

Neve necrótica

Dista o corrente três semanas e quatro dias do mais gélido cair de neve de que reza a minha história: saído à pressa de Viseu após horas catecolaminizantes passadas ao telemóvel e enfrentando e chutando para bem longe a minha falta de apetência social misturada com desenrasque, eis que rumo sobrepressurizadamente e em grau IX numa hipotética escala de sociopatia até à cidade mais alta de Portugal e, nesse preciso dia, que tão bem justificava os cinco "F" pelos quais é conhecida - Forte e Farta, tão opostamente à imagem que se assomaria ao espelho caso o olhasse, erguendo-se à direita tipo torreão cruel, fazendo-me sentir ainda mais pequeno, insignificante, impotente perante a incontrariável linha de Khronos e sua Anaké; Fiel, agora já à semelhança do meu cerne, devoto aos meus, retornando às origens; Formosa e, ao mesmo tempo, tão feia naquele instante, numa mescla de encanto e terror; Fria...
Fria também, caía a neve lá fora, esmagando-se suavemente contra o pára-brisas da carrinha, com a sua magia e beleza até então inquestionáveis mas que, pioneiramente, em vez de embalar e adocicar a alma, gelava delicadamente alma e coração, agoirenta, arauto de más novas.
Tremia: tremia por fora, sacudia-se tudo por dentro de uma forma visceral, num reboliço monumental e nauseante, crescente num proporcional inverso aos quilómetros remanescentes. Curva brusca, travagem dura, um instantâneo desligar de motor; pausa de três segundos com hiperinsuflação pulmonar como quem inspira toda a coragem do Mundo e subsequente apneia momentânea, a querer não deixar fugir tal fulgor, concomitante ao colocar do pé esquerdo no tão real chão. A visão afunila a cada degrau galgado; as suprarrenais funcionam quase ruidosamente, rude e brutamente qual locomotiva a carvão; a respiração torna-se ofegante, cessa e, reflexamente à hipercápnia e apneia fugaz retentora de adrenérgica energia, inspira-se afogada e fortemente, na busca de qualquer microgrão de intrepidez que tenha escapado à anterior golfada de ar.
A porta abre-se a medo mas de forma concludente. Lá dentro, um cenário de prenúncio de funeral que me aterra e revolta ao mesmo tempo: um cruzar de braços e comiseração não, não lhos tolero e muito menos perdoo. Rompo corredor adentro, que tão longo e tão curto me pareceu, e sou atingido na face por um pesado murro odorífero a necrose que me faz cambalear e esgazear ainda mais o olhar, chamando à actina e miosina das coxas e pernas todo o ATP e creatina do corpo para não tombar, adjuvado por mais uma injecção de epinefrina que me faz ser mecânico e objectivo. Nova e derradeira porta - somente mais um, embora tão reforçado, esguicho adrenérgico; escancarei-a e posso jurar que a vi pairando em círculos sobre o leito, qual abutre invisível, estridente e enegrecida, em espreita há um, dois, três dias desde o AVC, agora em pleno afiar de garras e lâmina. A visão é medonha; as entranhas em anterior superagitação colidem uma derradeira vez e páram, geladas de vontade de se esfumarem desde o core até à pele, enquanto que igual desejo se apodera da barreira epidérmica em sentido inverso: a Avó jaz quase inerte, olhar fixo no nada, desidratada, sem reflexo pupilar, sem esboço de movimento reactivo à dor que tento causar, respiração funda, ruidosa, no limite... E o cheiro, deus meu, o cheiro! Tresanda à filha da puta tenebrosa que gira e rodopia, cada vez mais rápido, cada vez maior, e que tento afugentar pela porta aberta ou pela fresta da janela de madeira. Xô!, XÔ! Um espasmo global de saber que tenho de a deixar abandonada na companhia da Morte. Por favor, que não desça nos segundos seguintes...
Voo de encontro ao telefone, disco o 112 que, estranhamente, tão impossível foi a toda a gente marcar, debito a história, desanco dura e casernalmente os ocupantes da cozinha e, de um salto, estou no quarto novamente. As fornalhas das suprarrenais esgotam o carvão, o corpo e mente quebram aos embates visuais e do acre fedor, que me corrói os pulmões e todas as vísceras que não se conseguiram desmaterializar, e choro. Choro compulsivamente, já sem força para enxotar o espectro desapiedado, entregue aos remorsos de não poder estar mais presente, presente mais vezes, de confiar no que me transmitem telefonicamente. Presenciou-o unicamente a Avó; fora, sou implacável, de novo, e rapidamente, duro como granito, cortante como xisto, obstinado com o objectivo seguinte. Ligo para o Hospital da Guarda; "aguardam-na". Sigo atrás. Avaliação analítica, radiografia, início de correcção hidroelectrolítica, observação/orientação da U.P., TC-CE e massacrante atrofia cortical e quantidade de lacunas isquémicas em tempo-real; internamento. Muito carinho, muita companhia, toque mesmo que não sentido ou apercebido. Deve ser tremendamente assustador degladiar-se sozinho com tanta escuridão.
Gente boa, muito boa e humana, daqueles que poucos se fazem já. O meu bem-haja a vós os dois; a minha gratidão pelo abraço quase desconhecido mas tão terno e reconfortante.

A garra de quem lutou sempre pela vida, mesmo que à quase-fome, manifesta-se com unhas e dentes: demasiado esforço durante 92 duros anos para se deixar ir sem mais um round. Com ajuda, o bicho pneumófilo dá-se por vencido, o S. aureus MSR acalma, a hemiplegia deixa, subitamente, de o ser, o sangue já não é flor-de-sal, as glândulas lacrimais reagem a palavras que representam o seu próprio conceito de vida e à voz de quem com elas partilhou quase uma vida. Alta.

Para quando o próximo confronto, para quando a próxima angústia da eminência de perder uma parte de nós próprios, da partida de uma Pessoa? Não sei nem quero. Aproveitar os momentos que há, dar amor e apoio sabendo que em troca recebemos o possível bem-estar de quem nos é querido.
Nunca sonhei, no entanto, que, afásica, tivesse tanto para ensinar e tanta maturação e auto-conhecimento proporcionasse um episódio devastador destes. Se gosto do que descobri a todos os níveis, isso, é tema de outras conversas. Internas.

6 comentários:

Sahaisis disse...

folgo em saber...

Catsone disse...

Tás desculpado o período de abstinência neste blog!
Força aí!
Abraço (sem paneleirices).

Catsone disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Badmadafaka disse...

Sois uns amores. Beijinhos e abraços!

Anónimo disse...

:( de 03:42:25/07-02-2009 a 17:28:57/23-02-2009

Badmadafaka disse...

Caro anónimo, anónimo mesmo permanece, tal como o objectivo de tal entrada, mas deverei dizer-lhe que a hora de internamento não está correcta.